Simultânea e conjuntamente ao extraordinário trabalho desenvolvido pelos profissionais de saúde, nos bastidores desse que poderia ser o enredo de uma triste e apocalíptica obra de ficção, a engenharia química trava mais uma de suas mais duras e fundamentais batalhas, o enfrentamento a pandemia
Identificado pela primeira vez na província chinesa de Wuhan, o vírus SARS-CoV-2, é o agente causador de uma das piores pandemias já enfrentadas pela humanidade até os dias atuais. Pertencente à família dos coronavirus1 (Coronaviridae), o patógeno detectado ainda no fim de 2019, na Ásia, é o microrganismo causador da COVID-19, enfermidade que vem assolando o mundo e dizimando milhares de vítimas. Classificada como síndrome respiratória aguda grave – SARS (podendo afetar também diversos outros órgãos além do pulmão), a COVID-19 apresenta alta taxa de transmissibilidade. Isso porque, a doença se dissemina através das vias aéreas, podendo permanecer no ar por até 2h30. Além disso, por se tratar de uma patologia respiratória, provoca sintomas semelhantes à de uma pneumonia, podendo evoluir a casos graves e óbitos, sobretudo, naquela população classificada como grupo de risco2.
Diante dessa crise de saúde pública sem precedentes na história, mais do que nunca, numerosos esforços vêm sendo realizados por especialistas das mais diversas áreas para unir forças, especialmente na busca por vacinas e medicamentos. Desse modo, conhecimentos de virologia, patologia, imunologia, epidemiologia, biotecnologia, bioquímica e tantos outros se mesclam, complementam e se conectam na luta contra a COVID-19. E é justamente nesse contexto de urgência de interdisciplinaridade que setores como a engenharia química, capazes de combinar uma ampla variedade de conhecimentos (sendo por isso conhecida como engenharia universal), tornam-se essenciais. Afinal, o papel desses profissionais sempre foi, e continuará sendo, descobrir soluções criativas para os distintos problemas enfrentados pela sociedade.
Impulsionada pela Revolução Industrial inglesa em meados do século XVIII, a engenharia química caracteriza-se pelo design e operação da síntese produtiva de inúmeros produtos. Segundo o Instituto Americano de Engenharia Química (AIChE), o setor pode ser entendido como a área dedicada à concepção, pesquisa e desenvolvimento, dimensionamento, melhoramento e aplicação dos processos e seus produtos. Isso inclui, análise econômica, projeto, construção, operação, controle e gestão das unidades industriais capazes de concretizar tais processos. Portanto, trabalhar no limiar das demais ciências e tecnologias, aplicando conceitos fundamentais de engenharia na modelagem de fenômenos físicos e químicos, fazem do engenheiro químico peça fundamental na construção de soluções. Dentre as principais estratégias que vem sendo desenvolvidas com foco no combate a pandemia, destacam-se: vacinas e fármacos; mecânica dos fluidos e a transmissibilidade; engenharia reversa e manufatura aditiva de EPI’s e equipamentos hospitalares; métodos de diagnóstico.
Vacinas e Fármacos
De fato, como ressaltado anteriormente, a vacina constitui a principal, se não a única arma para superação bem-sucedida da pandemia enfrentada. Como já fora comprovado em outras tantas oportunidades (erradicação da varíola e da poliomielite, por exemplo), a vacinação é uma importante ferramenta capaz de colaborar veloz e massivamente para a redução drástica de casos e consequentemente de óbitos. Isso porque, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), seu princípio de funcionamento parte da seguinte ideia: expor o organismo a antígenos3 do patógeno de modo a “treinar” o sistema imunológico a reconhecer e combater o agente causador da enfermidade, antes mesmo destes serem capazes de se instalar. Tudo isso, sem que haja necessidade de contrair a doença, uma vez que as vacinas são compostas por parcelas enfraquecidas ou inativadas do agente patogênico. Vale ressaltar ainda que as vacinas não impedem que os indivíduos sejam contaminados, apenas possibilitam aos organismos infectados uma rápida e eficaz reação.
A pergunta que fica agora é, “onde está a engenharia química dentro de tudo isso?
Embora o regime produtivo das vacinas seja essencialmente específico para cada um dos tipos existentes, de forma simplificada, sua produção compreende três principais estágios: síntese do insumo farmacêutico ativo – IFA, também conhecido como concentrado viral; formulação (adição dos demais componentes como conservantes e estabilizantes) e por fim, envase e rotulagem. Fato é que a esse complexo processo, soma-se ainda o desafio de operar cada uma das etapas em escala industrial. Afinal são necessárias quantias significativas do imunizante para suprir a demanda nacional. É exatamente no desenvolvimento, projeto, operação e controle das unidades industriais de fabricação das vacinas e seus insumos que a engenharia química proporciona sua maior contribuição no setor: a garantia irrepreensível de eficácia e qualidade.
Mecânica dos Fluidos e a Pandemia
Indiscutivelmente, o conhecimento científico e comprovado a respeito das formas de contágio de uma doença transmissível, integra o grande quebra cabeça que são os fatores de balizamento para a definição das estratégias de prevenção. É a partir daí que se torna possível determinar quais medidas são ou não eficazes. Assim, haja vista os mecanismos de transmissão apresentados pelo SARS-CoV-2, aquilo que mais chama atenção e preocupa os pesquisadores são as evidencias de transmissão aérea. Isso porque, contaminações dessa natureza acabam por afetar uma quantidade enorme de pessoas simultaneamente, criando casos de superpropagação. Diante desse novo desafio, o estudo do comportamento fluidodinâmico das micropartículas virais suspensas no ar (aerossóis) mostrou-se de enorme importância para a mitigação do risco de contaminação.
A análise fluidodinâmica compõe uma das bases da engenharia química uma vez que compreende a modelagem de fenômenos de transporte de quantidade de movimento. Nesse sentido, a dinâmica dos fluidos tem atuado como importante ferramenta de apoio aos engenheiros, fornecendo suporte ao enfrentamento da crise sanitária. Assim, tem sido possível, por exemplo, estimar, com êxito, medidas de convívio social e condições de ventilação seguras, capazes de limitar a propagação do coronavírus nas mais diversas situações do cotidiano. Além disso, outros interessantes avanços vêm sendo alcançados, sobretudo, no uso correto de máscaras, no projeto de salas de pressão negativa e no desenvolvimento de inaladores para tratamento de doenças respiratórias.
Manufatura Aditiva e Novos Materiais
Certamente, como nunca antes fora visto nos tempos modernos, a demanda por produtos hospitalares alcançou proporções assombrosas. A cada dia a sociedade necessita, com urgência, de milhares de seringas, respiradores, tubos de coleta, equipamentos de proteção individual e inúmeros outros insumos essenciais em tempos pandêmicos. No entanto, embora as indústrias tenham aumentado a produção, a oferta desses produtos foi, em alguns momentos, insuficiente. Á vista disso, diversos profissionais, inclusive engenheiros químicos, buscaram criar soluções aplicando estratégias e tecnologias inovadoras, tal como a manufatura aditiva.
Idealizada, em sua primeira versão, em 1980, pelo americano Charles Hull, as impressoras 3D vêm revolucionando a produção de bens de consumo, sobretudo, por sua alta flexibilidade. É justamente essa capacidade de se adaptar e imprimir as mais diversas peças, com riqueza de detalhes, que permitiu as impressoras assumirem especial papel na fabricação de respiradores e ventiladores pulmonares, face shield e membranas filtrantes. Destaca-se ainda o fato de que esse tipo de manufatura consiste em técnicas de baixo custo e ambientalmente amigáveis, uma vez que os materiais empregados são ecologicamente corretos.
Além disso, grande empenho vem sendo dedicado na descoberta de novos polímeros para a produção de insumos essenciais no combate a pandemia. Máscaras a base de micropartículas de prata (propriedades antifúngicas e antibacterianas dificultam a adesão do vírus ao material) e quitosana, um polissacarídeo encontrado no exoesqueleto de crustáceos são apenas alguns dos inúmeros avanços alcançados pelos pesquisadores. Outro setor que apresentou notável expansão é o de meios filtrantes. Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Controle Ambiental do Departamento de Engenharia Química (DEQ – UFSCar) sob a orientação da professora Monica Lopes, desenvolveu um material filtrante capaz de reter partículas de até 100 nm, dimensões médias do coronavírus. O mais curioso de tudo isso, é que o filtro é composto por fibras produzidas a partir da reciclagem de garrafas PET. Assim, materiais que levariam até 500 anos para se decompor no ambiente, se tornam ferramenta importante na prevenção e combate de doenças respiratórias infecciosas, como a COVID-19. Pois é, quem diria que, em pleno século 21, teríamos que voltar a estudar (e usar), ainda que de forma remasterizada, o estiloso e original traje anti pandêmico medieval.
Portanto, haja vista os enormes danos e avarias decorrentes da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, tornou-se imprescindível a busca pelo desenvolvimento de novos processos produtivos. Isso inclui análise de viabilidade, otimização de custos, bem como a adaptação a esse cenário pandêmico. Trabalhar na minimização dos efeitos acarretados pela crise sanitária provocado pelo coronavírus, é mais que obrigação, é a retribuição da confiança depositada pela sociedade na ciência. A boa notícia é que embora o cenário pareça amedrontador, a união, o bom senso e a consciência são a saída para a lagoa de jacarés desdentados, a qual o país enfrenta.